terça-feira

Homilias Sobre o Livro do Apocalipse - Capitulo II (Apocalipse 1: 1-4) - Ancião Atanásios(Mitilinaios)

 




“Homilias Sobre o Livro do Apocalipse – Os Sete Candelabros”

- Livro I -

Capítulo II

Apocalipse 1: 1-4

por Arquimandrita Atanásios(Mitilinaios)

2 de novembro de 1980

 

Revelação de Jesus Cristo, que Deus lhe concedeu para mostrar a seus servos os acontecimentos que em breve devem se realizar, e que Ele, por intermédio do seu anjo, expressou ao seu servo João, 2o qual comprovou tudo quanto viu da Palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo. 3Bem-aventurados os que lêem, bem como os que ouvem, as palavras desta profecia e obedecem às orientações que nela estão escritas, porquanto o tempo desses eventos está às portas. 4João, às sete igrejas que estão na província da Ásia: graça e paz a vós outros, da parte daquele que é, que era e que há de vir, e da parte do sétuplo Espírito que o assiste diante do seu trono, 5e de Jesus Cristo, que é a Testemunha fiel, o Primogênito dentre os mortos e o Soberano dos reis da terra. (1: 1-4).

 

O nome registrado como autor do Apocalipse é o do Santo Apóstolo e Evangelista João. Seu nome garante que este livro não é fraudulento ou forjado, mas sim uma obra genuína do Evangelista. Isso é de grande significado, e devemos prestar atenção a isso, uma vez que a Igreja aceitou este livro como obra de São João e, com razão, honrou-o ao incluí-lo nos livros canônicos do Novo Testamento. É um livro da Bíblia Sagrada.

 

Devemos acrescentar que a Igreja tem sido extremamente cautelosa a esse respeito. Obras dos Pais apostólicos ou sucessores dos Apóstolos, como Barnabé, por exemplo, ou de outros Pais apostólicos não foram incluídas no cânon do Novo Testamento. A Igreja exerceu extrema cautela e permitiu que muitos anos se passassem antes de incluir alguns dos livros no cânon do Novo Testamento. Como diz Orígenes(em "Contra Celso"), os livros de primeira ordem são aqueles que foram escritos pelas mãos de testemunhas oculares que viram, ouviram e tocaram em Deus, o Verbo Encarnado. Então, o autor do Apocalipse é São João.

 

Os Apóstolos comumente usam a palavra “servo” ao escreverem suas epístolas. No entanto, aqui temos o registro do nome de João simplesmente como João, sem um título como “o discípulo de Cristo” ou “o apóstolo de Cristo”. A ausência desses títulos mostra que, muito provavelmente, João conhecia os destinatários e leitores de seu livro. Eles eram muito próximos dele. Também é óbvio que a Revelação é dada à Igreja por Deus Pai, através de Jesus Cristo, através do anjo, através de João, à Igreja. O que temos aqui é uma cadeia viva de paradosis, ou tradição de ensino. Isso significa, literalmente, transmitir, tendo uma pessoa entregando e outra recebendo. Assim, Deus Pai dá a Revelação ao Filho Encarnado, não ao Deus Verbo, mas a Jesus Cristo, o Deus Encarnado. Jesus Cristo o transmite ao anjo; o anjo o transmite a João; e João passa para a Igreja. Aqui temos a maravilha da Tradição viva, ou Paradosis. Como sabemos, é a sagrada Tradição que preservou a autenticidade e validade das Escrituras.

 

Mencionaremos repetidamente que a chave para a interpretação Ortodoxa do Livro do Apocalipse deve ser encontrada no baú do tesouro da sagrada Tradição. Se você não tirar vantagem da chave que a sagrada Tradição lhe deu, você nunca interpretará corretamente e nem verá o verdadeiro significado das Escrituras. É por isso que os protestantes interpretam as Escrituras em qualquer direção, resultando na deterioração de sua fé e sua fragmentação em milhares de pedaços. Eles não têm certeza do que acreditam hoje, do que acreditaram ontem ou do que acreditarão amanhã.

 

...E, enviando-as pelo seu anjo, as notificou a seu servo João; 2 o qual testificou da palavra de Deus, e do testemunho de Jesus Cristo, de tudo quanto viu.(1: 1-2). Então, João teve visões, viu imagens e símbolos. Ele não os imaginou; nem os produziu ou fantasiou. Este é um relato literal do que ele realmente viu. Cristo lhe diz: escreve, pois, as coisas que tens visto. "Escreva o que você vê" e, em um caso específico, Ele lhe diz: Não o escrevas, elas são apenas para você. Sele essas informações, mas escreva todas as outras coisas. Assim, podemos ver muito claramente que o Santo Apóstolo, com muita simplicidade, registra as coisas que vê. Ele não adiciona ou subtrai nada.

 

A verdadeira característica de uma escritura genuína é que ela é simples e não muito articulada. Normalmente são os escritos fraudulentos que precisam ser articulados e muito bem editados, pois o objetivo é chamar a atenção, impressionar o leitor. No entanto, no livro autêntico que registra as verdades de Deus, não há necessidade de ser articulado, ou ter qualquer fanfarra especial, ou impressionar. A verdade é a verdade. Assim, João escreve simplesmente o que vê, nada mais, nada menos. Se ele deixar alguma coisa de fora, ele é culpado e responderá a Deus.

 

O Apocalipse termina da seguinte forma, advirto a todo aquele que ouvir as palavras da profecia deste livro: Se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus lhe acrescentará as pragas que estão escritas neste livro; e se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará a sua parte da árvore da vida, e da cidade santa, que estão descritas neste livro.  (Apocalipse 22:18). Em outras palavras, essa pessoa não entrará no Reino de Deus. Se o próprio Evangelista escreve isso sobre qualquer outra pessoa que tentasse alterar este livro, o quão cuidadoso ele necessariamente deveria ser? Portanto, na realidade, São João escreveu exatamente o que viu e o que ouviu.

 

Bem-aventurado aquele que lê e bem-aventurados os que ouvem as palavras desta profecia e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo (1: 3). O esboço introdutório, discutido em uma sessão anterior, termina com essa bem-aventurança, essa bênção, acumulada sobre aqueles que estudam, ouvem e aplicam as palavras deste livro e a palavra de Deus em geral. Esta bem-aventurança é a primeira das sete bem-aventuranças específicas do Apocalipse.

 

Para continuar, bem-aventurado aquele que lê e os que ouvem. Quem lê está no singular, enquanto quem ouve está no plural. Um lê e muitos ouvem. Onde aconteceria essa leitura e audição? Onde mais senão a Igreja? Este livro foi usado no culto público, assim como o Evangelho e as epístolas dos Apóstolos. É assim que o Apocalipse foi utilizado na Igreja primitiva. É por isso que diz, aquele que lê e aqueles que ouvem.

 

O propósito do uso deste livro no culto público é fortalecer, consolar os fiéis, mas também informá-los sobre o conteúdo deste livro. São Justino Mártir, em meados do século II, registra para nós um quadro belíssimo sobre a leitura da epístola e do Evangelho no culto público. Em uma das primeiras homilias apologéticas, referindo-se a quem lê e a quem ouve, ele escreve: “E no dia chamado dia do sol [era chamado de domingo pelos idólatras, o nome foi preservado nas línguas neolatinas até hoje], todos os que vivem nas cidades ou no campo se reúnem em um só lugar, e as memórias dos apóstolos (o Evangelho e as epístolas), ou os escritos dos profetas são lidos. ” Aqui podemos ver que a Igreja estava seguindo as instruções de São João, ou melhor, de Cristo; nós vemos isso muito claramente. Depois que o leitor parava de ler, o proistamenos [NdoT:do grego, "aquele que preside". Título dado a quem está à frente de uma Paróquia], o bispo, o responsável, começava a interpretar, a pregar e a explicar o material lido para que toda a congregação pudesse aplicar esses ensinamentos em seu dia a dia.

 

Fazemos algo semelhante hoje. Lemos repetidamente os versículos do Apocalipse. Nós os lemos no grego original; então, nós os traduzimos para nossa linguagem cotidiana e então os interpretamos. É assim que nos sintonizamos com a Sagrada Escritura, para que os nossos ouvidos se habituem a ela e para que ela se torne familiar para nós. É necessário ouvir sermões que inspirem a imitação de coisas boas.

 

Mas nossa Igreja teve que lidar com uma série de falsas interpretações circuladas por hereges, como por exemplo, o reinado de mil anos de Cristo. Essa heresia causou estragos na Igreja mesmo nos dias de São João. São João ainda estava vivo e o Apocalipse já estava sendo grosseiramente mal interpretado. O primeiro a interpretá-lo falsamente foi Cerinto, o Gnóstico. Ele misturou filosofia e várias religiões junto com alguns elementos do Cristianismo, e começou a proclamar os mil anos do Reino de Cristo. O apóstolo São João estava muito preocupado com essas coisas. A certa altura, São João estava em Éfeso e, ao visitar uma casa de banhos pública, alguém lhe disse que Cerinto também estava lá. Sua resposta, simplesmente por causa da presença do herege, foi: "Vamos embora rapidamente, antes que o telhado desmorone e mate todos nós!"

 

Enquanto os apóstolos viveram, eles não apenas corrigiram essas interpretações, mas ofereceram advertências contra elas, explicando essas coisas aos cristãos. São Paulo, por exemplo, diz: Depois que eu partir, sei que muitos interpretarão mal minhas palavras. São Pedro, na verdade, defende São Paulo quando ele escreve em sua epístola que existem inconstantes e indoutos que torcem - as palavras de São Paulo - como fazem as outras Escrituras para sua própria perdição (2 Pedro 3: 15-16). Himeneos e Fileto não distorceram o ensino de São Paulo sobre a ressurreição dos mortos? Eles não estavam ensinando que a ressurreição já havia ocorrido? (cf. 2 Timóteo 2: 17-19).

 

Os autores da Sagrada Escritura não têm culpa. O egoísmo das pessoas é geralmente o culpado por trás dos ensinamentos e interpretações errôneas. A chave(da verdadeira interpretação), como afirmei anteriormente, é a Tradição da Igreja fornecida pelo ensino dos Padres da Igreja. É assim que a Igreja interpreta. Se você insistir em interpretar da maneira que você deseja, devido à sua arrogância demoníaca, certamente irá falhar. Você se tornará um herege, pois a heresia nada mais é do que a interpretação lógica do dogma. Quando tento interpretar coisas que não podem ser interpretadas apenas através da minha lógica e do meu intelecto, quando tento interpretar um mistério profundo usando simplesmente a minha mente e meu entendimento, então me perco. Quando tento explicar ou interpretar o ensino da Igreja por métodos e meios lógicos, automaticamente me encontro no reino da heresia. Os santos escritores não são culpados [por soarem obscuros], apenas o orgulho, o egoísmo e a arrogância das pessoas dentro da Igreja são culpados.

 

No entanto, a Igreja, especialmente no Oriente, devido a todas essas dificuldades e inconsistências, foi obrigada a interromper o uso do Apocalipse nos cultos. No entanto, o livro é autêntico e a Igreja o incluiu no cânone do Novo Testamento. Rezamos para que durante um verdadeiro Sínodo Ortodoxo, a Igreja possa reconsiderar e readmitir o Apocalipse nos cultos, para que possa ser pregado no púlpito, assim como as epístolas de São Paulo e o resto dos Apóstolos. Sim, podemos rezar por isso. Claro, isso não impede ninguém de estudar e ensinar o Livro do Apocalipse, ou de que o uso dos versículos deste livro ajude um homilista da palavra de Deus a ensinar, ou apoiar um determinado assunto. Bem-aventurado aquele que lê e os que ouvem e guardam essas coisas; as três ações que São João aqui menciona nos lembram as palavras do Senhor: Bem-aventurados os que ouvem a palavra de Deus e a guardam (Lc 11,28).

 

Quando uma mulher em êxtase na multidão gritou: Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos em que mamaste (Lucas 11:27), o Senhor disse: Verdadeiramente, bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a guardam (11:28) [1]. Os três verbos nestas frases: aquele que lê, aquele que ouve e guarda as palavras, estes verbos - lê, ouve, guarda - são declarados no presente, o que sugere que isto deve continuar repetidamente e sem cessar. Devo sempre ler, devo sempre ouvir e devo sempre guardar a palavra de Deus. [A Palavra]Não diz “aqueles que ouviram”, mas sim aqueles que ouvem. Isso não é como dizer: “Eu ouvi alguns sermões ou fui a algumas aulas; Eu tive o suficiente, por que eu deveria ir de novo? ” Não, a palavra de Deus aqui é clara: Aquele que sempre lê; aqueles que sempre ouvem; e aqueles que sempre guardam a palavra de Deus.

 

Vamos considerar esta combinação tripla, da leitura, da audição e da manutenção da palavra de Deus. Sobre a leitura, para entender a palavra de Deus, devemos estar em Deus. Caso contrário, não podemos entender a palavra de Deus. Sobre isso, São Diádoco de Foticeia disse: “Não há nada pior; não existe pobreza pior do que falar de Deus estando fora e longe de Deus. ” Isso pode ser visto claramente no caso de pessoas que não vivem uma vida espiritual, mas falam sobre assuntos espirituais. Eles cometem erros e muitas vezes os ignoram. Eles tentam responder a perguntas, mas de acordo com seu próprio pensamento.

 

Quem não vive uma vida espiritual não pode falar sobre os assuntos de Deus. Não é possível. E essa pessoa pode nunca entender a palavra escrita de Deus, porque a compreensão da Palavra de Deus não é simplesmente acadêmica ou filológica. Alguém pode ter um Ph.D em divindade, mas não têm compreensão da palavra de Deus. A compreensão da palavra de Deus tem uma dimensão diferente. Não estou dizendo que a filologia ou algum conhecimento de literatura ou gramática não seja útil. Todos esses elementos ajudam, mas você não pode dizer: “Eu sou formado em literatura, então não terei problemas para entender a Bíblia”. Você não vai entender muito. O espírito das Escrituras será evasivo para você; você ficará apenas com a letra. A existência de uma atmosfera litúrgica é outro pressuposto para a compreensão clara da palavra de Deus. O que isso significa? Significa que a leitura ou a audição da palavra de Deus não podem ser reduzidas a uma conversa de sala de estar, nem se tornar um assunto acadêmico.

 

Há uma tendência (e essas tendências sempre existiram para algumas pessoas) de discutir assuntos teológicos profundos em uma sala de estar, com todos os acessórios conhecidos de uma sala de estar, junto com as piadas e risadas socializantes. As discussões são simplesmente acadêmicas. Novamente, embora a discussão possa ser muito teológica, eles não podem tocar a Palavra, com “P” maiúsculo, a Palavra de Deus. Essas discussões ficam nas bandagens de enfaixar, aquelas com as quais Theotokos, a Virgem Maria, O vestiu depois de Seu nascimento. É assim que essas pessoas vão. Elas não podem tocar a Palavra de Deus, nunca.

 

Não basta apenas falar sobre a Bíblia. Não há benefício quando falo sobre as Escrituras fora do ambiente litúrgico e fora da bênção da Igreja. É por isso que a Palavra de Deus deve ser conectada [em oração] dentro do espaço litúrgico. Simplificando, os sermões devem acontecer na igreja. Não estamos dizendo que é proibido falar em outro lugar, como a rua ou a montanha. Tudo bem, mas se deve estar conectado com o lugar litúrgico, depois da Divina Liturgia, por exemplo, ou depois do serviço das Vésperas. A Palavra de Deus durante ou após esses Serviços tem um efeito diferente no coração das pessoas.

 

Um tempo de silêncio interno e externo também é necessário para a pessoa entender a Palavra de Deus. São Gregório, o Teólogo, diz: “O Divino é experimentado em um estado de quietude”. Precisamos de uma silenciosa quietude para sentir e compreender Deus dentro de nós. Essa quietude é principalmente interna, mas também externa. Precisamos de paz em nossos corações, mas não devemos parar de ler a palavra de Deus, mesmo quando estamos em turbulência. No entanto, precisamos recuperar nossa paz a fim de mergulhar nas coisas profundas de Deus. Para nos submergir, precisamos de paz interior e quietude. Todos os nossos cuidados diários devem cessar. Além disso, quando estudamos a Palavra de Deus, devemos sentir que ela é para nós, e não para os outros. Devemos ver nossas próprias deficiências e não as dos outros. Sobre isso, Santo Isaac, o Sírio, diz: "Quando o homem de coração humilde estuda as Escrituras, ele nunca diz: 'isto é para aquela pessoa, este é um bom conselho para outras pessoas.'" Não, a Palavra de Deus está falando comigo.

 

Às vezes, enquanto pregamos a Palavra de Deus, alguns de vocês podem pensar: “O orador está falando sobre mim? Talvez ele tenha ouvido algo sobre minha vida privada. ” O orador não sabe de nada; Eu te asseguro. O próprio Deus dirige a Palavra de Deus. Claro, eu me preparei, mas o que foi preparado e está sendo expresso está sob a direção do próprio Deus. Sua palavra pode tocar muitos tipos diferentes de coração, de uma maneira especial. A Palavra é uma. No entanto, Ele toca cada pessoa de maneira diferente. São Cirilo de Jerusalém diz: “A água que irriga as plantas floridas é a mesma para todas as flores. Mas para uma planta a água causa uma flor vermelha, para a outra ela se torna branca, para a terceira uma flor amarela, todas causadas pela mesma água.”(São Cirilo de Jerusalém, “Catecismo 16). Da mesma forma, a Palavra de Deus toca o coração de cada ouvinte sincero de acordo com suas necessidades. Não destacamos os problemas de um ouvinte e tentamos basear nossa fala neles, como alguns ouvintes ingênuos podem pensar.

 

Além disso, precisamos ter humildade, que nos falta. Por exemplo, pensamos: “Gostaria que fulano estivesse aqui para ouvir isso. Seria muito útil para eles. ” Isso mostra orgulho, e é uma questão de orgulho quando pensamos que os outros precisam ouvir algo. Em vez disso, devo dizer: “Isso é só para mim e preciso me aprimorar”. Finalmente, precisamos começar nosso estudo, nossa leitura, com oração. Santo Isaac, o Sírio, diz: “Não tente entrar em contato com os mistérios de Deus e a Palavra de Deus sem oração”. Portanto, não abra as Escrituras; não comece a ler sem orar, sem pedir a ajuda de Deus. Enquanto ora, diga: "Senhor, aumente minha consciência no poder que existe em Suas palavras." Você deve considerar a oração como a chave para compreender o significado mais profundo das Escrituras.

 

Também é importante chegar a um entendimento sobre como ouvir a Palavra de Deus. Há um ou dois séculos, a maioria das pessoas não sabia ler. Hoje, o oposto é verdadeiro. Quase todo mundo pode ler. Mas, no passado, a fonte básica de conhecimento que conduziu às verdades de Deus era o sentido da audição, o ouvido. No entanto, ainda hoje, ouvir a Palavra é básico para todas as pessoas, porque a Palavra é oferecida por meio de uma língua viva. E muito parecida com a Palavra de Deus, ela está viva; então, quando a palavra de Deus é ouvida em uma língua viva, isso a torna especialmente graciosa [e poderosa].

 

A Palavra de Deus, neste caso, pode ser apresentada junto com as experiências pessoais do orador. E isso pode ser uma fonte de coragem para os ouvintes, no que diz respeito à aplicação da palavra de Deus. Não é a mesma coisa se você ouve algo no rádio, ou se lê em um livro. É algo muito diferente. É por isso que vamos à Igreja ouvir a palavra de Deus e não contamos somente com a leitura. Ler não substitui a palavra falada. E ouvir a palavra falada não substitui a leitura. Ambas as fontes paralelas são igualmente importantes.

 

Devo dizer-lhe também que ouvir a palavra de Deus pressupõe a presença de outras pessoas. A Palavra de Deus está conectada com a presença e a visão de outras pessoas. Em outras palavras, está conectado com a Igreja. E é muito importante, muito benéfico e de grande valor, que a palavra de Deus seja ouvida na Igreja. Por outro lado, segundo o santo Metropolita de Florina, Avgoustinos Kantiotes, se me sento sozinho, ouvindo uma gravação, é como se estivesse comendo comida enlatada. A palavra de Deus “enlatada” não tem o mesmo frescor da participação ao vivo. Claro, vou ouvir meus arquivos gravados; Vou ler meus livros; mas também farei questão de ir [à Igreja] e ouvir a palavra viva de Deus, para me conectar com os outros fiéis, meus irmãos e irmãs em Cristo. É assim, deste modo, para que eu possa participar da manifestação da Igreja, não apenas em seu culto litúrgico, mas também na audição da palavra de Deus.

 

Finalmente, no que diz respeito à aplicação da palavra de Deus, a declaração do Evangelista: e guardam as coisas que nela estão escritas, expressa-nos que a palavra de Deus deve ser aplicada. Devemos vivê-la. Mas precisamos vivê-la em sua totalidade. Não vamos selecionar e escolher. Não vamos dizer que “faremos isso, mas não aquilo.”

 

Porque o tempo está próximo (1: 3). Isso significa alguma coisa para nós? Vou lhe contar uma história de minha vida pessoal que se refere a isso. Isso remonta ao início dos anos 40, durante a horrível ocupação alemã, ou melhor, cerco. Estávamos na escola, três crianças em cada carteira, e fazíamos nossos exames finais. A sala de aula estava lotada e certamente não era um mau negócio para os alunos preguiçosos. Na época, estávamos sendo examinados em grego antigo, grego moderno e matemática. Meus colegas decidiram não estudar grego antigo, mas eu sim. Sentei-me no fundo da classe. Comecei a ajudar os três alunos atrás de mim, os três na minha frente e os dois de cada lado. No final, estava ajudando uma dezena de alunos, pois não havia supervisão nem professor em sala de aula. Em vez de escrever, estava tentando ajudar todos esses alunos a preencher seus testes, verificando se eles escreveram as coisas corretamente.

 

De repente, o professor entrou e anunciou: "Rapazes, vocês devem entregar seus papéis em cinco minutos." Não sei quantos de vocês vivenciaram algo semelhante a isso em seus anos de escola, mas não posso descrever como me senti. Comecei a transpirar e fiquei vermelho como um tomate de tanta vergonha. Fiquei paralisado e gritei sem pensar: "Ainda não, Sr. Professor!" Meu papel ainda estava em branco. Os outros alunos estavam entregando seus trabalhos e, embora eu fosse o único que havia estudado, não havia escrito nada. No final, entrei no escritório como um cachorrinho para implorar ao professor que me passasse. Essa é a sensação que o homem tem ao perceber que seu tempo acabou. É uma sensação terrível!

 

Santo Isaac, o Sírio, diz que, se você não viveu a vida corretamente, quando vê que a hora da morte está próxima, você entra em pânico. Além disso, quando alguém realmente permite que essa compreensão entre em seu ser interior - o tempo está próximo - então, sempre que essa pessoa lê essa frase nas Escrituras, ela não pode deixar de sentir o que descrevi em meus anos de escola. Esta frase, porque o tempo está próximo, tem o mesmo significado que as palavras anteriores deste capítulo, aquelas coisas que em breve devem acontecer. Já analisamos isso antes, mas o que chama a atenção é que essa afirmação se repete alguns versos depois, o que evidencia o fato de que o fim está galopando em nossa direção. O fim está ao virar da esquina. O fim é o tempo da profecia, ou o cumprimento das palavras da profecia. E a mensagem é: Bem-aventurado aquele que lê, e os que ouvem as palavras desta profecia, e guardam as coisas que nela estão escritas; porque o tempo está próximo.”

 

Um certo desenvolvimento eclesiástico me impressionou muito. Não sei se esse sentimento meu é totalmente correto, mas vou compartilhá-lo com você. Até o século XV, os fiéis que derramavam seu sangue pela fé eram simplesmente chamados de santos ou mártires. Desde o século XV, os mártires são chamados de “novos”, ou “neomártires.” Historicamente, temos alguns eventos significativos que dividem seções da história. Mais especificamente, após a queda de Constantinopla em 1453, perto de 1500, observamos o surgimento desse novo fenômeno, essa nova terminologia que rotula os mártires após a queda de Constantinopla como neomártires. Aqueles que terminaram suas vidas pacificamente desde aquela data também carregam o termo “novo; então temos São Nektarios, o Novo; São Nikodemos, o Novo; ou São Constantino, o Novo.

 

Nomear um santo como um “novo mártir”, ou o “recém-revelado”, dá a sensação de uma fronteira cronológica. Em outras palavras, digamos que temos a chegada de um novo tempo histórico, talvez daqui a quinhentos anos. Como a Igreja deverá classificar os mártires e santos que aparecerão daqui a quinhentos anos - os “novos-novos mártires” ou os “super-novos mártires”? Não faz sentido. Você sabe o que isso significa? Quando a Igreja fala sobre o novo, significa que temos o antigo e agora o novo. E depois do novo, não haverá mais novos. Receio que na consciência universal da Igreja haja uma sensação latente de que o fim está próximo. É por isso que a Igreja usa o termo "novo" para seus santos.

 

Após este esboço introdutório, o que se segue é o prefácio de todo o livro: João, às sete igrejas que estão na Ásia: Graça a vós e paz da parte daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do seu trono;   e da parte de Jesus Cristo, que é a fiel testemunha, o primogênito dos mortos e o Príncipe dos reis da terra. Âquele que nos ama, e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados, e nos fez reino, sacerdotes para Deus, seu Pai, a ele seja glória e domínio pelos séculos dos séculos. Amém. Eis que vem com as nuvens, e todo olho o verá, até mesmo aqueles que o traspassaram; e todas as tribos da terra se lamentarão sobre ele. Sim. Amém. Eu sou o Alfa e o Ômega, diz o Senhor Deus, aquele que é, e que era, e que há de vir, o Todo-Poderoso.  (Apocalipse 1: 4-8).

 

Até este ponto, tínhamos um esboço introdutório. Neste prefácio, de extrema importância e sobretudo teológico, o que se evidencia é o caráter epistolar, ou de carta, do livro. O Apocalipse é escrito no formato de uma carta. Além disso, o Evangelho de Lucas é uma carta. São Lucas escreve: Ao excelentíssimo Teófilo, enviei-lhe esta informação. A palavra carta não é mencionada, mas antes, "enviei-lhe este roteiro para que você possa aprender a verdade da nossa fé" (cf. Lc 1: 3). Portanto, é apresentado na forma de uma epístola ou de uma carta. Do mesmo modo é verdade para o Apocalipse. O livro tem a característica de uma epístola, não apenas por causa das cartas escritas às sete igrejas na Ásia Menor, mas porque isso se aplica a todo o livro. A forma antiga da epístola é mantida anunciando a identidade do autor. João é o autor. Os destinatários são as sete igrejas da Ásia Menor, e aí está a saudação: : Graça a vós e paz da parte de Deus Pai e assim por diante. Depois disso, vem a doxologia: A Ele seja glória e domínio pelos séculos dos séculos, amém. Portanto, o Apocalipse é uma carta. E oramos para que algum dia Deus permita que seja lido como uma leitura apostólica na Igreja.

 

João às sete igrejas na província da Ásia (1: 4). João, o remetente da carta, escreve às sete igrejas, os destinatários desta carta. Aqui, o nome do autor, João, é colocado no início da frase, e isso aparecerá novamente no versículo nove. O nome não tem títulos nem sobrenome, o que mostra que os leitores pretendidos desta carta conhecem João muito bem.

 

Quais são as sete igrejas mencionadas no Apocalipse? Quais são as sete igrejas para as quais nosso Senhor pede que uma carta especial seja enviada a cada uma delas? São igrejas históricas, igrejas literais, não são noéticas ou simbólicas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. Eram cidades da Ásia Menor, cidades antigas e animadas com forte presença cristã na época. Elas se tornaram episcopados, o que confirma uma forte presença da Igreja. A essas sete igrejas Cristo fala por meio do Apocalipse com uma mensagem especial para cada uma.

 

Alguém pode perguntar por que Cristo se dirige apenas a essas sete igrejas. Cristo diz a João, ao anjo da igreja de Éfeso escreva ou ao anjo de Esmirna. Por que uma carta foi escrita para essas igrejas e não para a igreja em Jerusalém? Ou Corinto? Ou Roma? Ou Alexandria? Essas últimas igrejas eram igrejas maiores e mais importantes. Somente Éfeso poderia se comparar com a grandeza e o título de Roma, Jerusalém ou a grande igreja de Antioquia. Somente Éfeso poderia se aproximar dessas grandes igrejas, porque as outras seis cidades dessas sete igrejas eram cidades muito pequenas na Ásia Menor.

 

Então, por que as epístolas são direcionadas e endereçadas a essas sete igrejas em particular, e não a outras igrejas maiores e mais amadurecidas? Em primeiro lugar, é importante observar que o número sete é usado. Sete é alegórico ou esquemático e expressa variedade junto com plenitude. Em outras palavras, sete igrejas denotam um quadro completo de toda a Igreja daquele tempo até o fim dos tempos; e esses sete tipos representativos de igrejas representam, por sua vez, a plenitude da Igreja. Em suma, as sete igrejas são sete dobras diferentes, sete realidades diferentes da Igreja Una, Santa, Católica e Apostólica.

 

Aqui temos duas circunstâncias interligadas. A primeira é que cada epístola é enviada à uma igreja histórica específica. Precisamos enfatizar esse ponto de uma igreja histórica específica, porque se refere a uma circunstância específica para cada igreja. Por exemplo, quando Ele diz, não és nem frio nem quente, és morno (3:15); ou deixaste o teu primeiro amor. Lembra-te, pois, donde caíste (2: 4-5), essas são falhas ou fraquezas específicas da igreja A ou B. Portanto, essas epístolas, no primeiro nível, têm um caráter histórico e visam curar as falhas individuais daquelas igrejas de dois mil anos atrás.

 

Em segundo lugar, essas epístolas também servem como advertências gerais para toda a Igreja ao longo dos tempos. Portanto, temos aqui duas dimensões entrelaçadas, sendo a primeira a histórica, que se limita às topografias das sete igrejas; e depois temos a outra dimensão, que se refere a toda a história da Igreja, ou seja, a Igreja ao longo dos tempos. Quando lemos o que Cristo diz à igreja dos Efésios, ou à Igreja de Filadélfia, significa que todos esses pontos são elementos que são apontados e ainda existem na Igreja Católica de Cristo.

 

As cidades onde as sete igrejas estavam localizadas eram cidades gregas. Toda a Ásia Menor na época era grega e essas são igrejas históricas, e epístolas históricas, com uma base histórica. Vou me referir a isso repetidamente quando chegar a hora, mas vou mencioná-lo agora. Quando Cristo diz: Eu removerei seu candelabro (2: 5), cada igreja é representada por um candelabro ou um castiçal, uma vela. Então, removerei o seu candelabro significa “Eu vou removê-la”. Ele pegou essas sete igrejas e as moveu. E nenhuma dessas igrejas históricas existe na Ásia Menor nos dias de hoje! Nenhuma! Nem Éfeso, nem Esmirna, nem mesmo uma delas! Os candeeiros foram removidos definitivamente em 1922, durante a infame destruição da Ásia Menor e a expulsão da população grega.

 

Santo André de Cesaréia diz: “Com o número sete, o que se quer dizer é a totalidade de todas as Igrejas”. Como os sete dias da semana são um símbolo da criação do mundo, ou nossa vida, o número sete ou as sete igrejas mostram a plenitude da Igreja. ” Portanto, peço-lhe que preste muita atenção a este ponto, porque tudo o que discutimos nestas sete grandes epístolas a essas igrejas não se limita às sete igrejas históricas, mas se refere, sempre, a toda a Igreja, que existe sempre e até o fim dos tempos.

 

Graça e paz a vós (1: 4) é a saudação cristã de forte e vívido caráter litúrgico. Esta saudação de São João é uma versão abreviada da saudação de São Paulo, A graça do Senhor Jesus e o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo (2 Coríntios 13:14), onde vemos as Três Pessoas da Santíssima Trindade. Nosso Deus é Triúno. A graça do Senhor Jesus, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós, amém. João não toma emprestado esse tipo de saudação de São Paulo ou vice-versa. Parece que ela sempre existiu na Igreja e teve um caráter litúrgico. Assim, os apóstolos João, Paulo, Pedro e Judas usaram essa saudação comum na Igreja. Esta forma de saudação existe ainda hoje em nossa Divina Liturgia, no início das orações da sagrada anáfora, quando o sacerdote sai para abençoar os fiéis. Visto que a graça de Deus é uma consequência favorável que brota da morte sacrificial de Cristo e da paz do Deus Pai, d’Aquele que é, foi e que vem, esta saudação torna-se uma confissão litúrgica de fé, ou um símbolo de fé.


No caso do eunuco etíope, o diácono Filipe disse-lhe: Se confessares que Jesus Cristo é o Filho de Deus, nada o impedirá de ser batizado, e o eunuco disse: Creio que Jesus é o Cristo o Filho de Deus (cf Atos 8: 27-39). Esta é uma confissão de fé. Mais tarde, devido a uma série de heresias na Igreja, o Credo da Fé torna-se mais detalhado. O conhecido Credo de Nicéia é usado até hoje, Creio em um só Deus, Pai Todo-Poderoso e assim por diante.


Desta saudação de João, vemos que temos um elemento mais arcaico na confissão de fé, uma confissão de fé em um espaço litúrgico. Afirmamos nossa fé; confessamos a nossa fé no espaço litúrgico, na igreja, para celebrar a Divina Liturgia. Antes da Sagrada Comunhão, devemos confessar nossa verdadeira fé. Portanto, esta saudação de São João Evangelista tem um caráter litúrgico vivo.

 

[1]: Lucas 11:28 foi traduzido erroneamente por todas as Bíblias em inglês[NdoT: o mesmo acontece em português] até hoje. A palavra grega original Μενούνγε é traduzida como: antes. Isso resulta em uma séria distorção do verdadeiro espírito deste versículo, que visa exaltar a Santíssima Theotokos, a Sempre Virgem Mãe de nosso Senhor. (cf. John Pickering, LL. D., A Comprehensive LEXICON of the Greek Language, Philadelphia 1871: Menounye (μενούνγε), conj. Certamente, verdadeiramente, certamente, certamente.

De acordo com o texto grego, Cristo concorda de todo o coração com essa mulher extasiada! Verdadeiramente! Claro! Bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a guardam, como minha mãe! O abuso da palavra “Μενούνγε” de modo viciado afasta a Theotokos deste grande louvor dado a ela por seu Filho! Pior ainda, os tradutores da versão King James não são alheios ao verdadeiro significado do grego “μενούνγε”, que eles traduzem corretamente em Filipenses 3: 8

 



Tradução: Hipodiácono Paísios


quinta-feira

A Construção do Coração pela Graça do Arrependimento - "O Homem Oculto do Coração" - Capítulo VII



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"O HOMEM OCULTO DO CORAÇÃO"

CAPÍTULO SETE 

A CONSTRUÇÃO DO CORAÇÃO PELA GRAÇA DO ARREPENDIMENTO  


  
O amor verdadeiro procede da Verdadeira Fé, caso contrário torna-se um amor artificial e corrupto, movido pela paixão do amor próprio e da vanglória. 
  
O EVANGELHO DE CRISTO COMEÇA com as palavras: 'Arrependei-vos porque o reino dos céus está próximo' (Mt 4:17). Essas palavras retomam o diálogo entre Deus e o homem, que foi cortado no Paraíso pela desobediência de nossos antepassados.[1] Mas essas palavras são agora proclamadas com uma nova criação em vista, uma nova geração, cuja Cabeça é Cristo, o próprio Criador. Segue-se que o arrependimento é o começo de nossa luta contra o pecado, para que o propósito original de Deus para o homem, criando-o à Sua imagem e segundo Sua semelhança, possa finalmente ser cumprido. 
  
Chega um momento na vida do homem em que ele sente que todas as obras que empreendeu trazem a semente da corrupção e são incapazes de permanecer diante do olhar do Eterno Juiz. Tal percepção leva ao que o Pe Sofrônio chamou de 'desespero abençoado', o que, por sua vez, leva ao arrependimento. Essa é a mesma "tristeza divina [que] produz arrependimento que leva à salvação" sobre a qual o apóstolo falou (2 Coríntios 7:10). 
  
Dizem sobre vida de Santo Ambrósio de Optina que, pouco antes de sua morte, perguntaram-lhe que regra de oração ele mantinha, e o santo respondeu: 'Não existe regra melhor do que a regra de arrependimento que o publicano nos ensina: '' Deus seja misericordioso comigo, um pecador. '' 'Muitas vezes acontecia que, antes de sua morte, grandes santos como São Sisoes, o Grande, pediam a Deus que prolongasse sua vida para que pudessem ter mais tempo para o arrependimento. Isso mostra que o arrependimento não é apenas necessário desde o início, mas também no meio e no final da vida espiritual de alguém. 
  
O primeiro passo do homem em direção ao arrependimento é romper seus laços com o mundo exterior, a fim de penetrar em seu ‘coração profundo’. O segundo passo é encontrar o coração profundo, para que ele possa ser curado pela graça de Deus, e encontrar a unidade dentro de si e do mundo inteiro. 
  
A vida cristã começa com a fé em Cristo e o arrependimento, que são estabelecidos pela Igreja como condições para o batismo. De acordo com os ensinamentos dos Pais, o nascimento natural do homem através de seus pais é seguido por um segundo nascimento, que é espiritual e realizado pelo Sacramento do Batismo. Mas há também um terceiro nascimento, realizado por lágrimas de arrependimento.[2] 
  
A vida cristã não é estática: ela cresce e é dinâmica. O crente deve manter o espírito de arrependimento mesmo após o batismo, a fim de fazer bom uso da graça que recebeu. Ele faz isso guardando os mandamentos de Deus. De acordo com São Marcos, o asceta, o Senhor está oculto dentro de Seus mandamentos.[3]Portanto, ao guardar os mandamentos, o crente agrada a seu Deus e Pai; ele mostra que ele é um filho regenerado de Deus. Ele cumpre Sua vontade e permanece na casa de seu Pai. 
  
Segundo o profeta Isaías, existem dois níveis de vida e pensamento: divino e humano. Eles estão tão distantes um do outro como o céu está da terra (Isaías 55: 9). Pela graça do arrependimento, o homem se mantém no nível divino - na visão inspirada pelos mandamentos divinos. Assim ele é preservado e cresce como filho de Deus. 
  
O arrependimento é um presente abrangente, porque contém todas as virtudes. O Santo Abba Ammonas compara o arrependimento de um monge a um círculo ardente que o envolve e o protege do pecado. O arrependimento o mantém nos pensamentos certos e concede a ele uma visão correta, porque o liberta da maneira humana de pensar, que é abominação aos olhos de Deus, e o orienta para o céu. O profundo arrependimento pode ser motivado pela consciência dos pecados de alguém ou pelo sentimento de que não podemos viver de acordo com a grandeza do chamado de Deus. Exemplos característicos de ambos os casos podem ser vistos nos principais apóstolos, Pedro e Paulo. Lembrando de seus pecados, eles se arrependeram; todavia, a graça de seu arrependimento revelou a eles o plano pré-eterno de Deus para o homem, e isso os levou à plenitude do arrependimento. Em outras palavras, eles começaram com arrependimento pessoal, e isso lhes abriu a visão do propósito pré-eterno de Deus para o homem. 
  
Desde o início, o arrependimento é acompanhado por um grande consolo. Como cumprimento de um mandamento, ele traz uma recompensa de Deus. Arrependimento é abstenção das obras mortas do pecado e apego ao Deus vivo. É inspirado pela fé, que acelera e leva a uma abundância de vida (cf. João 10:10). Supera a alienação do homem e o une novamente a Deus, seu arquétipo. 
  
Assim, o arrependimento em espírito de fé e humildade dá ao crente a esperança de que ele não morra em seus pecados. Quem realmente se arrepende não pode sofrer de desespero mórbido, porque está consolado. Ele só pode se desesperar de sua pobreza espiritual e vive a graça desse desespero sozinho com o Deus Único. Por outro lado, quem está mal-humorado na companhia de seus companheiros mostra que ele não está vivendo seu desespero sozinho diante de Deus. Ele sobrecarrega seus irmãos, quando lhes é ordenado que lhes agrade (cf. Colossenses 3:15). 

O padre Sofrônio costumava enfatizar o arrependimento como um modo de vida em que se encontra o coração, que é o ponto de encontro de Deus e do homem. O arrependimento derruba as paredes que cercam o coração. Nos estágios iniciais, as lágrimas costumam ter um caráter psicológico, como expressão de arrependimento. No entanto, elas devem ser valorizadas, pois se relacionam com Deus e recrutam os poderes espirituais do homem. (Lembro-me de uma vez que uma jovem grega disse ao padre Sofrônio: 'Pai, choro muito facilmente, talvez seja psicológico, talvez eu esteja errada.' O padre Sofrônio respondeu: 'Deixe as lágrimas caírem e transformá-las em oração.' ou seja, não importa se as lágrimas são psicológicas, pois, se misturamos a oração com elas, elas se tornam espirituais.) No entanto, quando o coração se abre, nosso choro é de outro tipo. Esse choro é como o terremoto de antigamente na vida do profeta Elias. O terremoto é necessário para que a brisa suave possa seguir (cf. 1 Rs 20: 11–12). O forte vento vem em primeiro lugar e prepara para a chegada do Consolador. O terremoto e o forte vento são o trabalho do arrependimento, que limpa o coração do homem da sujeira e da corrupção da morte, para que ele possa receber o consolo incorruptível do Espírito. 
  
O arrependimento abre o coração profundo do homem diante de Deus, para que a graça do Espírito Santo possa permanecer nele. Quando o homem recebe a Graça desse tipo, ele experimenta o início de seu terceiro nascimento - o nascimento em que ele trabalha junto com Deus para sua regeneração. O homem então adquire o estado de Cristo. Em seu coração, ele recebe Cristo, que se torna o ministro de sua salvação. Os olhos de sua alma se abrem e ele vê Deus e seu próximo de uma maneira diferente. 
  
O primeiro mandamento do amor é cumprido através do arrependimento, porque [deste modo] todo o desejo do homem é direcionado a Deus. O arrependimento unifica todas as suas forças, e ele se volta para Deus com todo o seu ser, até atingir o nível do grande mandamento de Deus, que é amar a Deus com toda a alma, mente e coração (Mt 22:37; cf. Dt 6). : 5) Ele começa a ver seu irmão e o mundo inteiro como Deus os vê e, a partir de então, seu único desejo é "que todos sejam salvos por Ele", como costumava dizer São Silouan. Ele anseia e ora para que a porção de misericórdia que obteve possa se tornar o lote de toda a humanidade. Assim, o homem se torna universal e chega "à medida da estatura da plenitude de Cristo" (Ef 4:13). 
  
Finalmente, através do arrependimento, o homem se torna verdadeiro, pois agora ele reconhece plenamente a pecaminosidade de sua natureza decaída. Como o apóstolo e evangelista João diz: "Se dizemos que não temos pecado, enganamos a nós mesmos, e a verdade não está em nós" (1 João 1: 8). Mas o pecado é a herança e a lamentável "contribuição" de todo homem (cf. Rm 3:23), devido às dimensões cósmicas de suas consequências. Assim que o fiel percebe seu pecado ele não o esconde, mas confessa sua queda diante da Face de Deus. Ele traz seu pecado à luz e ele assim é apagado. Nisso reside o poder do mistério da Confissão: quem se arrepende e confessa sua queda diante de Deus, reconhece uma verdade universal, e se há um tempo em que o homem é infalível, mesmo aos olhos do Senhor, é quando ele confessa sua pecaminosidade. Então, mais do que em qualquer outro momento, ele é verdadeiro e, quando é verdadeiro, atrai o Espírito da Verdade, que o transforma pela graça do arrependimento. Isso leva o crente a uma profunda consciência de sua pobreza espiritual e, em resposta ao seu arrependimento, o Espírito Santo concede cura e justificação. 
  
Além disso, por arrependimento e confissão, o cristão demonstra sua fé no poder de Deus para salvar e mostra que sua esperança não está no homem, nem em um anjo, mas apenas em Cristo, que o comprou pelo sangue de Seu Sacrifício. 
  
Finalmente, arrependimento e confissão são a cruz levada pelo crente para sua salvação e justificação. Consiste na vergonha sofrida ao revelar seus pecados a Deus na presença de um sacerdote da Igreja. Ao fazer isso, ele se coloca no caminho do Senhor, e o Senhor aceita sua vergonha, por maior ou menor que seja, como uma oferta sacrificial de gratidão, e em troca Ele concede a ele a Graça que o restaura. Quem se coloca no caminho do Senhor por vergonha voluntária descobrirá que o Senhor é seu companheiro, pois Ele disse que é o Caminho, o Caminho da Verdade e da Vida. Portanto, tanto a Graça como a Vida do Grande Companheiro de viagem são concedidas ao crente que humildemente deseja a companhia do Senhor. Em uma palavra, ao aceitar voluntariamente a vergonha na confissão, a pessoa não apenas escapa da vergonha involuntária no Juízo Final, mas também recebe o reconhecimento eterno de Deus. 

Mas a Graça é recebida em toda a plenitude quando o homem se arrepende por toda a humanidade. Assim que o arrependimento pessoal do homem dá frutos, Deus mostra a ele toda a raça caída de Adão, e o homem então faz de sua oração e arrependimento o clamor de toda a terra. Muitas vezes vemos isso nos justos do Antigo Testamento. Um exemplo característico é o dos Três Santos Filhos que permaneceram ilesos na fornalha ao se arrependerem da apostasia de Israel na Babilônia, assumindo-a. Eles aceitaram a chama infernal da fornalha como justa retribuição de Deus pelo pecado de seu povo (Dan. 3: 5–7). Também vemos esses exemplos na vida dos santos: o Santo Apóstolo Paulo queria ser um anátema para o seu povo (Rm 9: 3); Moisés orou por seu povo e pediu a Deus que o apagasse de seu livro, a menos que todo o seu povo fosse salvo (Êx 32:32). E em nosso tempo, São Silouan levanta a Deus uma oração de arrependimento por todo o mundo.[4] 
  




NOTAS 
  
1. On Prayer op. cit., p. 133 
  
2. Idem, 'Principles of Orthodox Asceticism', em The Orthodox Ethos, ed. A. J. Philippou (Oxford: Holywell Press, 1964), p. 285 
  
3. Philokalia, vol. 1, trad. e ed. G. E. H. Palmer, Philip Sherrard e Kallistos Ware (Londres e Boston: Faber e Faber, 1975), p. 123 
  
4. Veja 'Adam Laments' em “São Silouan”, op. cit., pp. 448–456. 


tradução: Hipodiácono Paísios