sexta-feira

A Ortodoxia como Terapia


Quarto capítulo do livro "O CAMINHO" (Uma Introdução à Fé Ortodoxa), escrito pelo  Protopresbítero George MetallinosProfessor Emérito da Escola de Teologia da Universidade de Atenas 


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Capítulo 4
  
A ORTODOXIA COMO TERAPIA 
  
Se quiséssemos definir convencionalmente o Cristianismo como Ortodoxia, diríamos que é a experiência da presença do não-criado (= de Deus) ao longo da história, e o potencial da criação (= humanidade) se tornando Deus “pela graça”. 
  
Dada a presença perpétua de Deus em Cristo, na realidade histórica, o cristianismo oferece à humanidade a possibilidade da theosis, assim como a ciência médica oferece à humanidade a possibilidade de preservar sua saúde, ou restaura-lá através de um procedimento terapêutico específico e um modo de vida em particular. 
  
O autor está em posição de apreciar a coincidência entre as ciências médicas e eclesiásticas, porque, como diabético e cristão, ele está ciente de que, em ambos os casos, ele tem que seguir fielmente as regras que foram estabelecidas, para atingir os dois objetivos. 
  
O objetivo único e absoluto da vida em Cristo é a theosis, em outras palavras, nossa união com Deus, para que o homem - através de sua participação na energia incriada de Deus - possa se tornar “pela graça de Deus”, aquilo que Deus é por natureza ( = sem princípio e sem fim). Isto é o que "salvação" significa no Cristianismo. Não é a melhoria moral do homem, mas uma recriação, uma re-construção em Cristo, do homem e da sociedade, através de uma relação existente e existencial com Cristo, que é a manifestação encarnada de Deus na História. Isto é o que as palavras do Apóstolo Paulo sugerem em Coríntios II 5:17: “Se alguém está em Cristo, ele é uma nova criatura”. Quem está unido a Cristo é uma nova criação. 

É por isso que - falando em termos cristãos - a encarnação de Deus-Logos - esta “intrusão” redentora do Deus Eterno e do Além-tempo no tempo histórico - representa o começo de um novo mundo, de (literalmente)uma “Nova Era”, que continua ao longo dos séculos nas pessoas dos cristãos autênticos: os santos. A Igreja existe neste mundo, tanto como o “corpo de Cristo” quanto “em Cristo”, para oferecer a salvação através da personificação desse procedimento regenerativo. Esta tarefa redentora da Igreja é cumprida por meio de um método terapêutico específico, pelo qual, através da história, a Igreja atua essencialmente como uma Enfermaria universal. “Enfermaria Espiritual” (hospital espiritual) é a caracterização dada à Igreja por São João Crisóstomo († 407).  
  
  
Mais adiante, examinaremos as respostas que respondem às seguintes perguntas: 
  
· Qual é a doença que a Ortodoxia cura? 
  
· Qual é o método terapêutico que implementa? 
  
Qual é a identidade do Cristianismo autêntico, que radicalmente o distingue de todos os seus desvios heréticos e de todas as outras formas de religião? 
  
1. A doença da natureza humana é o estado decaído da humanidade, juntamente com toda a criação, que igualmente sofre (“suspira e geme” - Romanos 8:22) junto com a humanidade. Este diagnóstico aplica-se a todas as pessoas (independentemente de serem ou não cristãs, crentes ou não), devido à unidade geral da humanidade (ref. Atos 17:26). A Ortodoxia cristã não se limita aos limites estreitos de uma religião - que se importa apenas com seus próprios seguidores - mas, assim como Deus, “quer que todas as pessoas sejam salvas e cheguem à realização da verdade” (Timóteo I, 2 : 4), uma vez que Deus é "o Salvador de todos homens" (Timóteo I, 4:10). Assim, a doença a que o cristianismo se refere, pertence a toda a humanidade; Romanos 5:12: “a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram; (eles se desviaram do seu caminho para a theosis). Assim como a queda (ou seja, a doença) é uma questão pan-humana, a terapia de salvação depende diretamente das funções internas de cada pessoa. 
  
O estado natural (autêntico) de uma pessoa é (patristicamente) definido pelo funcionamento interno de três sistemas mnemônicos; dois dos quais são familiares e monitorados pela ciência médica, enquanto o terceiro é algo tratado pela terapêutica pastoral. O primeiro sistema é a memória celular (DNA), que determina tudo dentro de um organismo humano. A segunda é a memória celular cerebral- função cerebral- que regula nossa associação com o nosso eu e com o meio ambiente. Ambos os sistemas são familiares à ciência médica, cujo trabalho é manter sua operação harmoniosa. 
  
A experiência dos santos está familiarizada com um outro sistema mnemônico: o do coração, ou memória "noética", que funciona dentro do coração. Na tradição Ortodoxa, o coração não tem apenas uma operação natural, como uma mera bomba que circula o sangue. Além disso, de acordo com o ensinamento patrístico, nem o cérebro nem o sistema nervoso central são o centro de nossa autoconsciência; mais uma vez, é o coração, porque, além de sua função natural, também tem uma função sobrenatural. Sob certas circunstâncias, torna-se o lugar de nossa comunhão com Deus, ou, Sua energia Incriada. Isso é evidentemente percebido através da experiência dos santos, e não através de qualquer função lógica, ou através de uma teologização intelectual. 

São Nicodemos da Montanha Santa († 1809), ao recapitular a tradição patrística geral em sua obra “Manual Hortativo”(Συμβουλευτικόν Εγχειρίδιον), chama o coração de "um centro natural e sobrenatural", e também de um centro paranormal, sempre que sua faculdade sobrenatural se torna ociosa, por causa do coração sendo dominado pelas paixões. A faculdade sobrenatural do coração é o supremo pré-requisito para a perfeição, para a realização do homem e, em outras palavras, para sua theosis e para uma incorporação completa na comunhão em Cristo. 
  
Em sua faculdade sobrenatural, o coração se torna o espaço onde a mente pode ser ativada. No códice da terminologia Ortodoxa, o nous (ΝΟΥΣ - aparecendo no Novo Testamento como 'o espírito do homem' e 'o olho da alma') é uma energia da alma, por meio da qual o homem pode conhecer Deus, e pode alcançar o estado de 'ver' a Deus. É claro que devemos esclarecer que o "conhecimento" de Deus não implica o conhecimento de Sua essência divina, que é incompreensível e inacessível. Essa distinção entre "essência" e "energia" em Deus é a diferença crucial entre a Ortodoxia e todas as outras versões do cristianismo. A energia da mente dentro do coração é chamada de "faculdade noética" do coração. Novamente enfatizamos que, de acordo com a Ortodoxia, a Mente (nous) e Lógica (logiké) não são a mesma coisa, porque a lógica funciona dentro do cérebro, enquanto a mente funciona dentro do coração. 
  
A faculdade noética é manifestada como a "oração incessante" (ref. Tessalonicenses I, 5:17) do Espírito Santo dentro do coração (ref. Gálatas 4: 6, Romanos 8:26, Tessalonicenses I 5:19) e é nomeada pelos nossos Santos Padres como “a memória de Deus”. Quando o homem tem em seu coração a “memória de Deus”, em outras palavras, quando ele ouve em seu coração “a voz” (Coríntios I 14: 2, Gálatas 4: 6, etc.), ele pode sentir Deus “morando” dentro dele (Romanos 8:11). São Basílio, o Grande, em sua segunda epístola, diz que a memória de Deus permanece incessante quando não é interrompida por cuidados mundanos, e a mente “se afasta” para Deus; em outras palavras, quando está em comunhão com Deus. Mas, isso não significa que os fiéis que foram ativados por essa energia divina se afastem das necessidades da vida cotidiana, permanecendo imóveis ou em algum tipo de êxtase; significa que sua Mente está liberada desses cuidados, que são itens que preocupam apenas sua Lógica. Para usar um exemplo com o qual podemos nos relacionar: Um cientista, que readquiriu sua faculdade noética, usará sua lógica para resolver seus problemas, enquanto sua mente, dentro de seu coração, preservará a memória de Deus incessantemente. A pessoa que preserva todos os três sistemas mnemônicos é o Santo. Para a Ortodoxia, ele é uma pessoa saudável (normal). É por isso que a terapia da Ortodoxia está ligada ao caminho do homem em direção à santidade. 
  
A não função, ou a função abaixo da paridade, da faculdade noética do homem é a essência de sua queda. O tão debatido “pecado ancestral” foi precisamente o erro do homem - desde aquele momento primitivo de sua presença histórica - em preservar a memória de Deus (= sua comunhão com Deus) dentro de seu coração. Este é o estado mórbido de que todos os descendentes dos ancestrais participam; porque não era um pecado moral ou pessoal, mas uma enfermidade da natureza humana (“Nossa natureza ficou doente desse pecado”, observa São Cirilo de Alexandria - 444), transmitida de pessoa para pessoa, exatamente como a doença que uma árvore transmite para todas as outras árvores que se originam dela. 
  
Inativar a faculdade noética ou a memória de Deus, e confundi-la com a função do cérebro (que acontece com todos nós), subjuga o homem ao estresse e ao meio ambiente, e à busca da bem-aventurança através do individualismo e de uma posição antissocialEmbora doente por causa de seu estado decaído, o homem usa Deus e seu próximo para garantir sua segurança pessoal e felicidade. O uso pessoal de Deus é encontrado na "religião" (= a tentativa de extrair força do divino), que pode degenerar em uma auto-deificação do homem ("Eu me tornei um auto-ídolo", diz Santo André de Creta, em seu grande Canon '). O uso do homem-companheiro - e subsequentemente a criação em geral - é conseguido explorando-os de todas as formas possíveis. Esta, portanto, é a doença que o homem procura curar, incorporando-se plenamente ao “hospital espiritual” da Igreja. 

2. O propósito da presença da Igreja no mundo - como uma comunhão em Cristo - é a cura do homem; a restauração de sua comunhão centrada no coração com Deus; em outras palavras, de sua faculdade noética. Segundo o professor e padre John Romanides, “a tradição patrística não é nem uma filosofia social, nem um sistema moral ou um dogmatismo religioso; é um método terapêutico. Neste contexto, é muito semelhante à Medicina e, especialmente, à Psiquiatria. A energia noética da alma que reza, mental e incessantemente, dentro do coração, é um "instrumento" natural, que todos possuem e necessitam de terapia. Nem a filosofia, nem nenhuma das ciências sociais ou positivas conhecidas. podem curar este "instrumento". É por isso que os casos incuráveis nem sequer estão conscientes da existência deste instrumento. ” 
  
A necessidade do homem ser curado é uma questão pan-humana, relacionada primeiramente à restauração de cada pessoa ao seu estado natural de existência, através da reativação da terceira faculdade mnemônica. No entanto, também se estende à presença social do homem. Para que o homem esteja em comunhão com seu semelhante, como irmão, seu interesse próprio (que a longo prazo age como amor próprio) deve ser transformado em abnegação (ref. I Coríntios 13: 4:5). O amor sem ego existe: é o amor do Deus Triádico (Romanos 5: 8, João I 4: 7), que dá tudo sem procurar nada em troca. É por isso que o ideal social da Ortodoxia cristã não é "posses comuns", mas a "falta de posses", como uma renúncia voluntária de qualquer tipo de demanda. Só então a justiça pode ser possível. 
  
O método terapêutico oferecido pela Igreja é a vida espiritual; a vida no Espírito Santo. A vida espiritual é vivenciada como um exercício (Ascesis) e uma participação na Graça Incriada, através dos Sacramentos. Ascesis é é a violação de nossa autogovernada e inanimada natureza pecaminosa, que corre impetuosamente em uma morte espiritual ou eterna, ou seja, a eterna separação da Graça de Deus. Ascesis aspira à vitória sobre nossas paixões, com a intenção de conquistar a subserviência interna àqueles pontos focais do homem e participar da Cruz de Cristo e Sua Ressurreição. 
  
O cristão, que está praticando tal restrição sob a orientação de seu pai espiritual-terapeuta, torna-se receptivo à graça, que ele recebe através de sua participação na vida sacramental do corpus eclesiástico. Não pode haver nenhum cristão não praticante, assim como não pode haver uma pessoa curada que não siga o conselho terapêutico que o médico lhe prescreveu. 
  
3. O que está descrito acima nos leva a certas constantes, que verificam a identidade da Ortodoxia Cristã: 
  
(a) A Igreja - como o corpo de Cristo - funciona como um hospital-centro de terapia. Caso contrário, não seria uma Igreja, mas uma "religião". O Clero foi inicialmente selecionado através dos curados, para funcionar como terapeutas. A função terapêutica da Igreja é preservada hoje, principalmente nos mosteiros que, tendo sobrevivido ao secularismo, continuam a Igreja dos tempos Apostólicos. 
  
(b) Os cientistas da terapia eclesiástica são as pessoas já curadas. Aqueles que não tiveram a experiência da terapia não podem ser terapeutas. Essa é a diferença essencial entre a ciência terapêutica e a ciência médica. Os cientistas da terapia eclesiástica (pais e mães) levam adiante outros terapeutas, assim como os professores de medicina levam adiante seus sucessores. 
  
(c) (Julgar que) A Igreja está se limitando a um simples "perdão de pecados", para que um lugar no paraíso possa ser assegurado, constitui alienação e é equivalente a ciência médica perdoar o paciente, para que ele possa ser curado após a morte! A Igreja não pode enviar alguém ao Paraíso ou ao Inferno. Além disso, o Paraíso e o Inferno não são lugares, são modos de existência. Ao curar a humanidade, a Igreja prepara a pessoa para que possa eternamente olhar para Cristo em Sua luz incriada como uma visão do Paraíso, e não como uma visão do Inferno, ou como "um fogo que tudo consome" (Hebreus 12:29). . E isso, naturalmente, diz respeito a cada pessoa, porque TODAS as pessoas devem olhar eternamente para Cristo, como "o Juiz" do mundo inteiro. 
  
(d) A validade da ciência é verificada pelo alcance de seus objetivos (ou seja, na Medicina, é a cura do paciente). É a maneira que a ciência médica autêntica se distingue do charlatanismo. O critério da terapia Ortodoxa em relação à Igreja é também a conquista da cura espiritual, abrindo caminho para a teosis. A terapia não é transferida para a vida após a morte; acontece durante a vida do homem, aqui, neste mundo (hinc et nunc). 

Eu gostaria de pedir aos cientistas médicos de nosso país que prestem atenção especial à questão da não deterioração das relíquias sagradas, dado que elas não foram cientificamente interferidas, mas, nelas, está manifesta a energia da Graça Divina; porque foi observado que, no momento em que o sistema celular começa a desintegrar-se, isso cessa automaticamente e, em vez de emanar qualquer mau cheiro de decadência, o corpo emana uma fragrância distinta. Limito este comentário aos sintomas médicos, e não me aventuro no aspecto de fenômenos miraculosos como evidência da theosis, porque esse aspecto pertence a outra esfera de discussão. 
  
(e) Por fim, os textos divinos da Igreja (Bíblia Sagrada, textos Sinódicos e Patrísticos) não constituem sistemas de codificação de qualquer ideologia cristã; eles carregam um caráter terapêutico e funcionam da mesma maneira que as dissertações universitárias funcionam na ciência médica. O mesmo se aplica aos textos litúrgicos, como por exemplo as Benção. A simples leitura de uma bênção (oração), sem o esforço combinado dos fiéis no procedimento terapêutico da Igreja, não seria diferente da ocasião em que um paciente recorre ao médico por suas dores excruciantes e, em vez de uma intervenção imediata do médico, ele é limitado a ser colocado em uma mesa de operação, e sendo lido o capítulo que diz respeito à sua doença específica. 
  
Isso, em poucas palavras, é Ortodoxia. Não importa se alguém aceita ou não. No entanto, no que diz respeito aos cientistas, tentei responder cientificamente à pergunta: “O que é Ortodoxia?” 
  
Qualquer outra versão do cristianismo constitui uma falsificação e uma perversão do mesmo, mesmo se aspirar a apresentar-se como algo Ortodoxo. 
  
Esclarecimentos 
  
1. O Incriado = Algo que não foi fabricado. Isso se aplica apenas ao Deus Triúno 
O criado = Criação em geral, com o homem em seu ápice. Deus não é um poder “universal”, como designado pela terminologia da Nova Era (“tudo é um, todo mundo é Deus!”), Porque, como o Criador de tudo, Ele transcende todo o universo, dado que em essência Ele é “Algo ”Totalmente diferente (Das ganz Andere). Não há associação análoga entre o criado e o Incriado. É por isso que o Incriado se faz conhecer através de sua auto-revelação. 
  
2. Um significativo texto cristão do século 2, “O Poemen (Pastor) de Hermas”, diz que para nos tornarmos membros do Corpo de Cristo, devemos ser pedras “quadradas” (= adequadas para construção) e não os arredondadas! 
  
3. De acordo com Pe John Romanides, a quem nós devemos essencialmente o retorno à visão “Philokalistica” (terapêutica-ascética) de nossa Fé, e de fato a nível acadêmico; “Religião” implica todo tipo de “associação” do incriado e do criado, como é feito na idolatria. A pessoa “religiosa” projeta seus “preconceitos” (= pensamentos, significados) no reino divino, assim “fabricando” seu próprio Deus (isso também pode ocorrer na faceta não-patrística da “Ortodoxia”). O objetivo é “expiação”, “apaziguamento” do “divino” e, finalmente, o “uso” de Deus para a própria vantagem (a fórmula mágica: do ut des). Em nossa tradição, no entanto, nosso Deus não precisa ser “aplacado”, porque “Ele nos amou primeiro” (João I 4:19). Nosso Deus age como “Amor” (João I, 4:16) e amor altruísta naquele. Ele nos dá tudo, e nunca pede nada em troca de Suas criações. É por isso que a abnegação é a essência do amor cristão, que vai muito além da noção de transação. 
  
4. Isto é expresso pelo canto litúrgico familiar e frequentemente repetido: “Nós mesmos e uns aos outros, e toda a nossa vida, vamos apelar para Cristo nosso Senhor”. A incorporação adequada é normalmente encontrada nos mosteiros, onde quer que funcionem na tradição Ortodoxa, é claro. É por isso que os monastérios (por exemplo, os da Santa Montanha) continuam a ser o modelo de "paróquias" deste "mundo".

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